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Dados sensíveis, covid-19 e LGPD

Atualizado: 25 de nov. de 2020


Profa. Dra. Cinthia Obladen de Almendra Freitas, Diretora Acadêmica e de Pesquisas do Instituto Nacional de Proteção de Dados (iNPD)


Reportagem publicada no Estadão.



A internet, a informatização de processos e empresas, a facilidade de coleta e armazenamento barato de dados nos mais diferentes formatos e tamanhos, concomitantemente com a evolução da comunicação e da transmissão de conteúdo, vem gerando tantas transformações que conceitos como Inteligência Artificial, Aprendizagem de Máquina, Aprendizagem Profunda, Computação Ubíqua, Computação Pervasiva, Big Data, Sociedade de Algoritmos, Sociedade Transparente, Sociedade da Exposição, Sociedade de Controle e muitos outros se tornaram parte do cotidiano. Vive-se uma geração em que a Informática pode desenvolver e aplicar praticamente qualquer algoritmo baseado em dados. Vive-se a obesidade de dados, visto que estes são coletados mesmo sem finalidade definida, o que resulta em exageros e violação de privacidade. Muito difícil para qualquer usuário da Internet saber onde, quando e para que seus dados são ou foram coletados, onde estão armazenados e como estão sendo processados ou tratados.


A privacidade e a proteção de dados constituem temas recorrentes e continuam atuais. E, no Brasil, são temas atualíssimos a partir do sancionamento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei No 13.709, em 14 de agosto de 2018. Nesse sentido, o confronto entre o Direito e o tratamento de dados sensíveis, em tempos de pandemia, é um tema de real importância.


Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, declarou em 2010 que a abertura e o compartilhamento de dados pessoais equivalem a uma evolução de uma “norma social”[1] (JOHNSON, 2010, p. 01), fazendo-se valer de interesse pela mudança de costumes sociais que são entendidos e aceitos como normais no que tange ao uso de dados pessoais. Eis aqui o debate entre o entendimento de uma norma jurídica que tutela a privacidade e os dados pessoais frente aos riscos existentes, por exemplo, em redes sociais. Neste contexto, a “norma social” mencionada por Zuckerberg, a qual, segundo ele, evolui ao longo do tempo, aponta para padrões de privacidade mais elásticos e dinâmicos quando o interesse é coletar, tratar, compartilhar dados pessoais. Mas será que o mesmo vale para tempos de covid-19?


Warren e Brandeis, em 1890, previam que os recintos sagrados da vida privada e doméstica haviam sido invadidos pela tecnologia da época, isto é, as fotografias instantâneas que poderiam ser capturadas por qualquer pessoa e publicadas nos jornais de qualquer cidade, de modo que a solidão e a privacidade teriam se tornado mais essenciais para o indivíduo. Os autores ponderam que as empresas modernas e as invenções, por meio de invasões na privacidade alheia, sujeitam o indivíduo a dores e aflições mentais, muito maiores do que poderiam ser infligidas por meras lesões corporais (WARREN; BRANDEIS, 1890, p. 196).[2]


Nesse cenário, considerando o reconhecimento dos direitos da personalidade no ambiente de constitucionalização do Direito Civil brasileiro[3], é interessante retomar a Teoria dos Círculos Concêntricos da Esfera da Vida Privada ou Teoria das Esferas da Personalidade (Sphärentheorie), formulada em 1953 pelo jurista alemão Heinrich Hubmann e revisitada por Heinrich Henkel em 1957, também jurista alemão; conforme discutido por Freitas e Meirelles (2020). A referida Teoria menciona que a vida privada do ser humano é composta por 3 círculos concêntricos, a saber: privacidade ou esfera privada (esfera externa), intimidade ou confidência (esfera intermediária) e segredo (esfera íntima) (DI FIORE, 2012., p. 2; SZANIAWSKI, 2005; NASCIMENTO, 2009, p. 26).


A privacidade é a esfera mais externa, na qual as relações interpessoais são superficiais (NASCIMENTO, 2009, p. 26) e, portanto, os dados aqui expostos ou divulgados deveriam ser somente os dados que possam ser classificados como públicos, visto não existir detalhamento sobre a vida das pessoas. Aqui se destaca o interesse público, pelo qual se tornam relevantes aspectos da vida privada que possam ser expressos à sociedade por meio de dados públicos. Não há invasão de aspectos íntimos, muito menos ligados à esfera do segredo.


A esfera intermediária, também denominada de intimidade, engloba aspectos da vida privada representados pelos dados pessoais e destina-se a proteger a esfera íntima da vida privada, mas não a esfera do segredo. Assim, tem-se que “a esfera íntima protege a pessoa inteiramente, ficando a mesma intocável aos olhos e ouvidos do público” (SZANIAWSKI, 2005, p. 357-358). Nesta esfera deve-se proteger o sigilo domiciliar, profissional e, por exemplo, comunicações telemáticas. Esta esfera engloba dados mais restritos do indivíduo em comparação à camada externa (privacidade ou esfera privada). Aqui são compartilhados dados com poucas pessoas, a exemplo do ambiente familiar, amigos íntimos ou ambiente profissional por necessidade (DI FIORE, 2012, p. 4).


E por fim, tem-se a esfera do segredo, a qual constitui o conjunto de dados mais secretos sobre alguém. A pessoa não deseja ver exposto ou compartilhado este conjunto de dados (DI FIORE, 2012, p. 4). E é nesta esfera que se encontram os dados sensíveis, uma vez que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) traz a seguinte definição (art. 5º, inciso II):


II – dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;


Em tempos de pandemia, dados sobre saúde podem ser coletados a partir de diferentes métodos e técnicas visando estabelecer contact tracing, termo que advém da área da Saúde Pública e consiste no processo de identificação de pessoas que podem ter entrado em contato com uma pessoa infectada e a subsequente coleta de dados sobre esses contatos (LEONG et al., 2009). A captura de dados pode estar em toda a parte desde os motores de busca (a exemplo de Flu Trends, dados de gripe e dengue), as câmeras e o reconhecimento facial, a geolocalização por meio do monitoramento de celulares e smartphones, entre outros (FREITAS; CARNEIRO; GLASMEYER, 2020).


Ocorre que as esferas já não são tão bem definidas e circunscritas em si mesmas, mas possuem membranas permeáveis. Os dados fluem com ou sem o consentimento dos usuários. Dados são difusos, complexos e líquidos, mas não podem ser tratados sem que os princípios (art. 6º) e hipóteses (art. 7º) da LGPD sejam efetivamente respeitados. Mesmo no contexto pandêmico, em que flexibilizações de privacidade em prol da Saúde Pública possam ser necessárias, não se pode deixar de observar os princípios e hipóteses que regem a LGPD.


Deve-se ter em mente que a liberdade de expressão e a privacidade estão interligadas, não podendo uma ultrapassar os limites da outra – ponto este que deve ser sempre analisado, principalmente, na Internet, uma vez que não se pode querer publicar algo sob a égide da liberdade de expressão sem deixar de analisar a privacidade dos envolvidos, internautas ou não.


A liberdade de expressão em tempos de pandemia deve ser fundamentada em dados confiáveis, há que se considerar a importância da Internet e das mídias digitais, bem como, não esquecer da segurança cibernética. A Saúde Pública deve também observar as diretrizes da LGPD. Do lado da privacidade, há que se estar atento como titular de dados e os Estados e as empresas de TICs devem passar longe dos excessos do controle e vigilância (FREITAS; CARNEIRO; GLASMEYER, 2020).


O cenário pode apresentar-se como de colisão de princípios, mas caminhar no sentido da proporcionalidade entre o tratamento, lícito e adequado de dados pessoais e sensíveis, e a privacidade é fundamental. A pandemia de 2020 será um marco sob diversos pontos de vista, incluindo-se a privacidade.


*Cinthia Obladen de Almendra Freitas, doutora em Informática pela PUCPR. Professora titular da PUCPR da Escola de Direito. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação Econômico e Socioambiental (Mestrado e Doutorado) da PUCPR. Diretora Acadêmica do Instituto Nacional de Proteção de Dados – INPD


Referências


DI FIORE, Bruno Henrique. Teoria dos círculos concêntricos da vida privada e suas repercussões na praxe jurídica. 2012. Disponível em: . Acesso em: 16 de abr. de 2014.


FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. O uso de dados sensíveis de pacientes nas redes sociais e a LGPD. In: Direito, governança e novas tecnologias [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/2020. Coords: Aires José Rover; Fernando Galindo Ayuda; Adrian Todoli Signe. Florianópolis: CONPEDI, 2020 / Valência: Tirant lo blanch, 2020. p. 40-60.


FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra; CARNEIRO, João Vitor Vieira; GLASMEYER, Rodrigo José Serbena. O tratamento de dados pessoais e sensíveis frente ao contact tracing durante o COVID-19. Boletim GEDAI/UFPR, junho, 2020. Disponível em: https://www.gedai.com.br/o-tratamento-de-dados-pessoais-e-sensiveis-frente-ao-contact-tracing-durante-o-covid-19/ Acesso em: 07 jun. 2020.


JOHNSON, Bobbie. Privacy no longer a social norm, says Facebook founder. The Guardian, 11 de janeiro de 2010. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2010/jan/11/facebook-privacy. Acesso em: 07 jun. 2020.


NASCIMENTO, Aline Tiduco Hossaka Molette. Direito à vida privada e à intimidade do portador do HIV e sua proteção no ambiente de trabalho. Monografia. Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências Jurídicas. Curso de Graduação em Direito, Curitiba-PR, 2009.


LEONG, Kan-Ion, SI, Yain-Whar, BIUK-AGHAI, Robert P.; FONG, Simon. Contact Tracing in Healthcare Digital Ecosystems for Infectious Disease Control and Quarantine Management. 3rd IEEE International Conference on Digital Ecosystems and Technologies, 2009. p. 306-311.


SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua tutela. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.


WARREN Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890. Disponível em: http://faculty.uml.edu/sgallagher/Brandeisprivacy.htm. Acesso em: 07 jun. 2020.


[1] Texto original: “People have really gotten comfortable not only sharing more information and different kinds, but more openly and with more people (…). That social norm is just something that has evolved over time”.


[2] Texto original: The intensity and complexity of life, attendant upon advancing civilization, have rendered necessary some retreat from the world, and man, under the refining influence of culture, has become more sensitive to publicity, so that solitude and privacy have become more essential to the individual; but modern enterprise and invention have, through invasions upon his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater than could be inflicted by mere bodily injury.


[3] Constituição Federal – art. 1º, inciso III: a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988); Constituição Federal – art. 5º, inciso X – “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988); Código Civil – artigo 11, que preconiza que “… os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” (BRASIL, 2002); Código Civil – artigo 21, “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.” (BRASIL, 2002).


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