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Homem ou mulher, pouco importa, é o seu rosto que eles querem

Atualizado: 25 de nov. de 2020

Artigo de Thamilla Talarico, Diretora de Parceiras Estratégicas com Setor Privado do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD)


Publicado no Estadão



Dados são o combustível dos tempos de hoje. Fotos de rostos, aos montes e de graça, é o desejo de qualquer desenvolvedora de tecnologia de reconhecimento facial do mundo. Como obtê-las diante da baixa circulação de pessoas em pleno isolamento? Basta lançar um novo desafio nas redes sociais. Se viraliza, pronto. Todo mundo volta a usar o FaceApp, que já nos deixou mais velhos e agora até de gênero trocado. E cá estamos nós mais uma vez, dando de bandeja, a sabe-se lá quem, algo que, assim como nossa impressão digital, é insubstituível: nossa própria cara – à tapa, diga-se de passagem. A brincadeira parece inocente, mas está se tornando recorrente e as consequências podem ser graves. Vão de episódios de discriminação racial a deep fakes, chegando a potenciais sistemas de vigilância social. E pergunta se tem alguém preocupado com isso?


Enquanto no Brasil, em plena escalada exponencial do número de casos de corona vírus, a população, desavisada, se distrai com o novo hit do FaceApp – aplicativo russo investigado pelo FBI e cuja política de privacidade é tão genérica e abrangente como seu nome -; nos EUA, gigantes da tecnologia anunciam a suspensão de projetos de reconhecimento facial de longa data. Essa semana, a IBM informou que não mais investiria no setor como um todo, justificando sua decisão a partir do potencial abuso a direitos humanos que uma tal tecnologia é capaz de ensejar. Já a Microsoft também se posicionou e não vai mais vender tais soluções para departamentos de polícia norte-americana até que haja uma regulamentação nacional sobre o tema.


No meio do ano passado, algumas cidades americanas já tinham banido o uso de reconhecimento facial por agências governamentais considerando as ameaças que tal tecnologia poderia impor a liberdades civis. Talvez o caso mais emblemático seja o de São Francisco, precisamente por ser a terra do Vale do Silício, celeiro da inovação tecnológica ocidental, grande investidor na pesquisa dessa tecnologia e uma das pioneiras na decisão de banimento do uso de ferramentas de reconhecimento facial para cumprimento da lei pelas forças policiais. Em casa de ferreiro, parece que o espeto realmente é de pau.


Até a Amazon decidiu se posicionar. Há anos, a empresa é cobrada e criticada pelo mau uso feito pela polícia de sua ferramenta Rekognition, que é particularmente imprecisa em pessoas negras. Logo depois dos protestos antirracistas que tomaram o mundo por conta do assassinato brutal de George Floyd por um policial, eles decidiram suspender por um ano o fornecimento do serviço. Esperam que o “Congresso tenha tempo suficiente para implementar regras adequadas para o uso de tal tecnologia”.


A ausência de normas ou parâmetros éticos e de transparência para o uso de ferramentas de reconhecimento facial pelos governos se tornou, sem dúvida, ainda mais questionável nas últimas semanas por conta dos protestos e do consequente monitoramento dos manifestantes. Entretanto, meses atrás, com a decretação da pandemia e o pavor do contágio, tomamos conhecimento de uma profusão de sistemas de rastreamento da população via reconhecimento facial para monitorar e, eventualmente, frear a disseminação do vírus, especialmente no continente asiático.


No entanto, a discussão ganhou novos contornos com o alerta de especialistas de proteção de dados a respeito de uma possível e, cada vez mais, iminente criação de um aparato de vigilância estatal que controla e monitora populações inteiras sob o argumento do estado de emergência e em nome da saúde pública.


Aqui no Brasil, por muito tempo e ainda hoje a segurança pública era e segue sendo o argumento predominante para tal tratamento de dados. Câmeras de segurança estão por toda parte, das portarias aos elevadores, passando pelos postes de iluminação pública e chegando até os coletes de policiais militares. Aqui, inversamente ao que se tem visto nos EUA, o reconhecimento facial é cada vez mais usado pelo governo e pela polícia – vide prisões durante o carnaval a partir de sistemas instalados em câmeras de segurança.


Por fim, se as gigantes da tecnologia estão suspendendo contratos com outros governos por questões éticas, quem seriam os fornecedores do governo brasileiro? Como garantir o princípio da transparência e da segurança de dados pessoais tão sensíveis como nossos próprios rostos? Além disso, o que as máscaras representam para sistemas de reconhecimento facial já comprovados? Será que a troca de gênero do FaceApp tem alguma relação com o estudo de rostos mascarados? Tais respostas, só o tempo trará, assim como o entendimento de que nossas fotos hoje já valem mais do que o número do nosso cartão de crédito. Afinal, por que será que o FaceApp não te cobra nada pelo serviço?


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