Artigo de Thamilla Talarico, Diretora de Parceiras Estratégicas com Setor Privado do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD)
Publicado no Estadão
Em 1984, de George Orwell, a censura e o monitoramento se davam pela própria língua. Palavras ou conceitos eram literalmente removidos do vocabulário e suas menções na imprensa, reescritas. No Brasil da covid-19 e manipulação estatística de vítimas da pandemia, não chega a ser preciso alterar a linguagem, nem edições passadas de jornais. Novas e conflitantes verdades são rapidamente criadas e propagadas a todo momento nas plataformas e mídias sociais. O mercado das fake news segue em alta, a liberdade de imprensa e de expressão estão completamente deturpadas e a desinformação é ferramenta fundamental na manipulação política contemporânea.
O PL das Fake News ou o Projeto da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet segue em pauta para votação no Senado e sua intenção original é louvável: combater a desinformação na rede. Entretanto, é preciso dar tempo para o debate público a seu respeito. Do jeito que o texto se encontra e na pressa com que está sendo votado, ele tanto pode dar abertura a uma sociedade de vigilância digital, como pode vir a estimular ainda mais a concentração do poder nas mãos das big techs e dos governos que atuam em sua fiscalização.
Mais do que nunca precisamos falar de privacidade, proteção de dados, liberdade de ir e vir, de associação e até de pensamento, na internet. Nossas ações ou pegadas digitais não podem se tornar propriedade dos sites e aplicativos que usamos. Nem estão eles autorizados a compartilhar dados pessoais com parceiros, fornecedores, clientes ou até com o governo, sem o nosso conhecimento. É preciso que tenhamos noção e clareza do uso que é feito das nossas próprias informações. Afinal, os fins e meios para tratar dados podem ser os mais diversos, comerciais e políticos, legítimos ou não, e os interessados em fazê-lo vão de grandes marcas anunciantes a partidos políticos pré-eleição.
Apesar do Marco Civil da Internet preconizar a neutralidade da rede, ainda é preciso discutir a concentração e os limites do poder e da responsabilidade de plataformas, intermediários e políticos na governança e no uso de dados espalhados pela world wide web. Afinal, formar consensos e direcionar pensamentos fica muito mais fácil e perigoso em uma realidade de deep fakes e big data como a que vivemos hoje. Principalmente agora que populações inteiras são monitoradas e rastreadas à distância para fins de contenção do corona vírus. O momento presente clama pela conscientização e pela ampla discussão de direitos digitais fundamentais.
Precisamos falar de censura digital, especialmente quando o isolamento segue por prazo indeterminado e nossos dados pessoais ou perfis online são a principal forma pela qual interagimos social, econômica e politicamente hoje. É urgente a discussão e aculturamento da Sociedade a respeito do poder dos dados, da checagem de fake news e da real possibilidade de manipulação ideológica por quem detêm informações pessoais a nosso respeito.
“Em que tipo de mundo e de sociedade queremos viver, sobretudo em que espécie de democracia estamos pensando quando desejamos que essa sociedade seja democrática?”, indaga Noam Chomsky em seu livro “Mídia: propaganda política e manipulação”. Lá, ele relembra grandes feitos da propaganda na fabricação de verdades.
O estado de emergência pode ser argumento para todos os lados. Prova disso é que enquanto o PL das Fake News, com pouquíssimo tempo de debate legislativo é acelerado, a entrada em vigor de uma lei amplamente debatida, votada e sancionada como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – a LGPD -, tem sua data, mais uma vez, adiada. Apesar da incerteza sobre quando entra em vigor, o recente reconhecimento do direito à proteção de dados como um direito fundamental e autônomo pelo Supremo Tribunal Federal, é, sem dúvida, um marco para o país.
No entanto, é preciso ir além para entender porque as fake news são ferramentas da “pós-verdade”, como diz Chomsky, e o quanto podem distorcer a realidade deliberadamente. Devemos formar cidadãos capazes de compreender e defender a autonomia e criticidade de pensamento dentro dessa nova ordem mundial digital. Se ainda não ficou claro, que fique: hoje somos nossos dados e dados são poder. Valem muito mais do que petróleo ou ouro e são muito mais ubíquos do que até a ficção orwelliana poderia imaginar.
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